Se o desenganado Ford Crown Victoria tiver direito a um obituário, este será parecido com aqueles reservados aos grandes astros de cinema. A distinção tem motivo, afinal, poucos veículos estrelaram tantos filmes ao longo da carreira, que começou em 1979 com o novo LTD, que voltaria a utilizar o nome Crown Victoria (de um cupê, de 1955) em 1980. Mas não só nas telas: na vida real, os sedãs fazem parte do cotidiano da nação mais motorizada do mundo. Será o último carro de passeio ianque com construção cabine sobre chassi, motor V8 e tração traseira. O fim de uma era que ainda está muito viva.
CARRO DE RAIZ É cada vez mais raro encontrar um automóvel de passeio com chassi em separado, um processo que vem desde 1923, com a introdução do monobloco parcial do Lancia Lambda. O chassi Panther servia também ao Mercury Grand Marquis, versão menos austera do Crown Victoria, que deixou de ser feita em 4 de janeiro, com o fim da divisão. E ainda serve de base ao luxuoso Lincoln Town Car, o preferido pelos fabricantes de limusines graças ao uso de chassi —, que ficarão sem o grandalhão em breve – outro golpe, junto à crise econômica. O Lincoln é a última derivação da linha a ser comercializada, já que o Crown Victoria é vendido apenas a frotistas desde 2007. E ainda faz sucesso: só em 2010, cerca de 30 mil Mercurys foram vendidos, além de quase 38 mil Crown Victoria. Uma tiragem ironizada no palco.
LIMITADO A QUÊ? O comediante Jerry Seinfeld também é conhecido como aficionado por automóveis, que sempre tiveram um papel na série Seinfeld, sucesso que durou de 1989 a 1998. Em um dos quadros de stand-up comedy inseridos no programa, Seinfeld ironiza o uso da sigla LTD pela Ford, ou Limited, justificada (segundo o astro, claro): “Sim, é limitado (Limited) ao número que conseguimos vender”.
AUTOESTIMA Ironias à parte, o fato é que a autoestima do sedã full-size foi colocada nas alturas com a participação no filme Homens de Preto, de 1997. Os agentes, que se envolvem em secretas escaramuças alienígenas, preferem o anonimato dos ternos pretos com gravata, discrição reforçada na opção por um Crown Victoria LTD 1986/1987. Um sedã tão burocrático em aparência, que logo é hostilizado pelo inconformado Agente J, personagem do também comediante (ator/rapper) Will Smith: “Toda a tecnologia ilimitada do universo e nós andamos por aí em um Ford p.o.s?” (NR: piece of shit, ou pedaço de excremento). É que, ao contrário do impassível Agente K, encarnado por Tommy Lee Jones, o Agente J ainda não sabia que, sob a forma banal do LTD, havia uma máquina movida a jato capaz de, até mesmo, rodar pelo teto de um túnel, tudo ao toque de um botão vermelho. O sucesso fez com que o papel fosse assumido Mercedes-Benz Classe E, que estreou a geração no segundo filme da série, de 2002.
A PRAÇA É NOSSA As outras aparições são menos prestigiosas — ou mais próximas da realidade. Com o Chevrolet Caprice fora do jogo desde 1996, bastaram poucos anos para o mais bem-sucedido Ford tomar conta da praça. Em cidades como Nova Iorque é possível ver uma frota interminável de Crown amarelos. Um predomínio que também tem data para terminar. Desde 2008, o Crown é o único que não é nem híbrido ou adaptado para pessoas com dificuldade de locomoção a constar na lista de táxis aprovados para trabalhar na Big Apple. Autorização que vale até 2014, quando o tipo não constará mais entre os 13,2 mil táxis da cidade. Antes disso, o Crown Victoria vai entrar para a reserva em outro serviço.
PROTEGER E SERVIR O imaginário das perseguições e cenas policiais não deixa de lado o Crown Victoria, que encontra concorrência tímida entre os carros de passeio só no Dodge Charger e, em breve, do Chevrolet Caprice (não o veterano, mas uma versão do australiano Holden Commodore). O monopólio é explicado pelo uso de chassi, que, ao contrário do monobloco, não precisa ser desempenado depois de pequenas batidas. Abusos comuns em manobras de perseguição, como a receita da Academia Policial para tirar carros perseguidos do prumo: um toque com a dianteira na extremidade das laterais traseiras do outro veículo. A versão Police Interceptor conta com transmissão reforçada, para patrulhar em baixas velocidades durante muito tempo, além de freios e suspensão para serviço pesado (heavy duty). Sob o capô, o V8 4.6 modular de 258cv, 16cv a mais que o convencional, com velocidade máxima limitada a 193km/h por precaução. Nas frotas policiais, o modelo será substituído pelo pasteurizado Ford Taurus que, graças ao uso de tração dianteira ou integral, tirará a graça das grandes escapadas de traseira a cada esquina, como nos filmes – além do som do V8, silenciado diante dos novos quatro cilindros e V6 3.5.