A compra, por um valor irrisório, de veículo financiado por uma concessionária ou em negociação segura pode parecer esperteza, mas é considerada crime para a Polícia Civil de Minas Gerais. A Delegacia de Furtos e Roubos de Automóveis da capital investiga há seis meses uma quadrilha especializada no golpe do “carro tumulto”, termo mineiro usado para o carro NP (não pago) ou Finan (financiado). Acusados de estelionato, os envolvidos usam dados falsos, laranjas e até documentos de mendigos ou pessoas que já morreram para financiar um veículo já com a intenção de não quitar as prestações. Pouco depois, os anúncios de carros com preço baixo se espalham pelo boca a boca e nos classificados da internet. Os veículos são revendidos a terceiros por um valor muito abaixo do mercado. Os compradores, para a polícia, cometem crime de receptação.
Há modelos variados e preços que despertam interesse, como um Honda New Civic 2007 por R$ 12 mil, uma picape Hillux do ano por R$ 10 mil, um Ford Fusion com 1 mil quilômetros rodados por apenas R$ 6 mil ou ainda um Stilo completo modelo 2010/2011 pela bagatela de R$ 4 mil. Às vezes há multas, IPVA atrasado, mas o comprador consegue circular por um ou dois anos, até que a financeira acione a Justiça e seja expedido o mandado de busca e apreensão do carro. Como o veículo não será encontrado no endereço apresentado à época da compra, só mesmo se for parado numa blitz.
“Investigamos uma quadrilha bem organizada, que aproveita as facilidades de compra e a falta de critérios das financeiras. Eles adquirem um veículo e depois simplesmente não pagam o financiamento e repassam o carro por muito menos do que ele vale. Há um esquema de revenda e uso do carro até que ele apresente restrições judiciais, o que demora no mínimo um ano. Quando isso ocorre, e a gente não pega na rua, muitas vezes o veículo é abandonado ou vai parar num ferro-velho”, afirma o delegado Ramon Sandoli, que também comanda a Coordenação de Operações Especiais do Detran/MG.
Segundo o delegado, a máfia do “carro tumulto” não age só na capital e na Grande BH. Os agenciadores, que também ‘trabalham’ no varejo, como revelam as investigações da Polícia Civil e os classificados da rede, negociam carros com compradores de São Paulo, Rio de Janeiro e estados do Sul do país. “Quem procura esse tipo de facilidade sabe no que está se metendo. Ninguém é inocente. Investigamos toda a rede de funcionamento desse golpe e estamos identificando os envolvidos e até os ferros-velhos. Todos nesse negócio estão praticando crimes”, diz o delegado.
Receptação
Os acusados podem ser indiciados por estelionato e uso de documentos falsos, com penas que vão de um a cinco anos de prisão para cada crime e multa. De acordo com o criminalista Raimundo Cândido Júnior, ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil de Minas Gerais (OAB/MG), os compradores também podem responder a processo judicial por receptação e correm o risco de prisão. A pena para esse crime varia de um a quatro anos de prisão e pagamento de multa.
“Tem um ditado que mostra bem a atitude desse comprador: laranja madura na beira da estrada está bichada ou tem marimbondo no pé. Ele quer se passar por esperto, mas também comete um crime, assim como o vendedor do carro”, afirma o advogado.
Anunciante oferece Ford Fusion 2010 por R$ 6 mil
Um anunciante de Araporã, no Triângulo Mineiro, oferece um Ford Fusion 2010 por R$ 6 mil, entre outros modelos sempre novos. Em um dos maiores sites de vendas na internet, o vendedor lista os itens de conforto e segurança, como abertura interna do porta-malas, sensor de estacionamento, GPS, bancos em couro com regulagem de altura, computador de bordo, teto solar, airbags, faróis de xenon e controle de estabilidade. Na conversa, o anunciante, que já vendeu pelo site três carros nos últimos seis meses, dá todos os detalhes do esquema.
– O valor é este mesmo, R$ 6 mil?, pergunta o interessado.
– Isso, é Finan, tumulto, responde o vendedor.
– Estou interessado no carro, mas não conheço o esquema. O valor me chamou a atenção.
– É tudo em nome de laranja. Você anda dois anos até enrolar.
– Mas não pago as prestações?, questiona o comprador.
– Se quiser pagar o problema é seu, mas está em nome de uma pessoa que nem existe.
– Preciso levar algum documento até a loja ou vocês montam tudo?
– Você é da polícia? Está querendo saber demais. Não tem loja não. É só trazer o dinheiro para mim.
Vendedores orientam clientes a agir irregularmente em compras de carros
O pintor Pedro (nome fictício), de 45 anos, sempre deu duro na vida para comprar e manter os dois carros velhos e a moto que usava até o ano passado. Em dezembro, porém, a vontade de ter um carro zero falou mais alto e Pedro aceitou a dica de alguns conhecidos de comprar um “carro tumulto”. Morador da zona rural de uma cidade da Região Metropolitana de Belo Horizonte, ele procurou uma concessionária de veículos da capital e recebeu as instruções de como conseguir fechar o negócio: o pintor poderia “comprar” os documentos de um usuário de crack que tivesse nome limpo e precisasse do dinheiro para sustentar o vício.
Pedro diz que é honesto e se diz arrependido de ter participado de um esquema assim. No fim do ano, ele esteve em um ponto de venda de drogas e pagou R$ 200 a um viciado para usar seus dados de CPF e identidade. O contracheque e o endereço ficaram por conta do vendedor da concessionária, que cobrou R$ 700 para agilizar os documentos com um despachante. Com um carro novo da Fiat já emplacado, que custou só R$ 900, Pedro saiu da loja com a consciência pesada.
“Tinha vontade de ter um carro novo, mas era muito caro para mim. Muitos conhecidos já tinham comprado carro dessa maneira e resolvi arriscar. Fui a uma concessionária indicada por um amigo e o vendedor cobrou R$ 700 pelo carro zero financiado. Ele me disse como conseguir os documentos, que não precisavam ser meus. Sei que só posso rodar com o carro por um ano, mas onde moro não há muita fiscalização. De qualquer maneira, ando sempre preocupado e não pretendo mais fazer isso. Vou tentar vender o carro novo. Sei que consigo pelo menos R$ 8 mil nele, no tumulto também”, conta o pintor.
Ao simular interesse em uma moto Twister vermelha, ano 2005, o Estado de Minas procurou outro anunciante, que pedia R$ 3,5 mil. O anúncio apresenta “moto tumulto”, descreve os débitos com multas e IPVA e ainda faz proposta de troca por um carro. Por telefone, desconfiado, o vendedor fala que há 15 prestações atrasadas, que a moto ainda não tem restrições de busca e apreensão e desliga rapidamente.
Um vendedor, que trabalha com picapes na Região Centro-Sul da capital, oferece uma Montana preta Flex, ano 2007, por R$ 14 mil. Ele explica que o carro foi comprado por R$ 32 mil, faz algumas perguntas para tentar se certificar com quem está falando e diz que o negócio é perigoso. O vendedor garante que os documentos de 2011 estão em dia, conta que apenas 10 parcelas foram pagas do financiamento de 60 meses e insinua: “Se você não quiser continuar pagando…”. Questionado se não daria problemas à pessoa que financiou o veículo, ele responde: “Ah, dá sim. Mas o carro está em nome de terceiros e não será achado no endereço”.
Em um fórum de site especializado em venda de automóveis na internet, compradores e vendedores negociam os modelos. Um homem que se identifica como JM, da cidade de Arcos, no Centro-Oeste de Minas, debocha do valor apresentado pela anunciante Érika, que quer vender um Fox 2008, com placa “de fora”, por R$ 10 mil. Em uma mensagem em dezembro, ele anuncia seus carros de luxo por no máximo R$ 12 mil e escreve: “Queridinha, seus preços estão altos”.
Justiça procura 68 mil veículos em Minas
Levantamento divulgado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ/MG) mostra que, em dezembro de 2010, havia 68.684 carros com mandados de busca e apreensão no estado, sendo 21.722 na Região Metropolitana de Belo Horizonte e 12.240 deles na capital. Em comparação com o mesmo período de 2009, houve aumento de mais de 4 mil veículos com restrição judicial em todo o estado. Os processos abrangem desde a inadimplência de consumidores que não conseguiram pagar as dívidas e casos de estelionato a mandados expedidos por outras situações criminais.
Para o presidente da Associação dos Revendedores de Veículos do Estado de Minas, Rodrigo Souki, o estelionato não é só um problema das financeiras. Segundo ele, as instituições bancárias mantêm uma relação mais próxima com as concessionárias e, em caso de golpes, o prejuízo é solidário.
“Esses casos de estelionato ocorrem dentro da inadimplência, mas a nossa vigilância está maior. Sabemos que sistema das financeiras já acusa quando a ficha passa mais de uma vez com o mesmo CPF ou em situações onde não se consegue confirmar os dados do cliente. E nós também estamos mais atentos. Havia casos, por exemplo, de funcionários que diziam que vinham buscar contrato para o empresário assinar, ou filhos que queriam levar o documento para a mãe, que oficialmente pagaria o carro. Não aceitamos mais que os contratos de financiamento sejam assinados fora da loja e instalamos câmeras em todo o shopping de veículos para coibir a ação dos estelionatários, que não querem mostrar o rosto”, afirma Rodrigo.
O delegado Ramon Sandoli, coordenador de Operações Especiais do Detran/MG, admite que, neste tipo de crime, é difícil chegar aos autores, mas garante que as investigações estão adiantadas. “Eles usam celular com chip comprado em jornaleiro, nome e e-mails falsos nos anúncios na internet e só trabalham com dinheiro à vista, mas estamos conseguindo rastreá-los”, afirma o delegado. Segundo ele, as empresas demoram a pedir à Justiça o mandado de busca e apreensão e dificilmente repassam à polícia informações sobre fraudes que sofrem, o que prejudica a investigação.
Procuradas, as financeiras Santander e Itaú Unibanco não quiseram se pronunciar. A BV Financeira informou que, numa carteira com 4 milhões de clientes, a inadimplência nos contratos de veículos está abaixo do mercado. Por meio de sua assessoria, o banco informou que os casos de golpe são inexpressivos e que, comprovando-se a fraude, como o uso de dados de terceiros e documentos falsos para análise de crédito, a empresa instaura um processo e entra na Justiça com um pedido de busca e apreensão do carro.