Protegido, por uma posição geográfica privilegiada, das forças mais destruidoras da natureza, como o terremoto seguido de tsunamis que arrasou parte do Japão, o Brasil convive com uma tragédia que se repete a cada ano, cujos resultados se aproximam das grandes catástrofes naturais que assolam o planeta. Anualmente, o país conta na casa dos milhares as vidas perdidas em uma combinação de omissão, estruturas rodoviárias ultrapassadas, traçados criminosos e imprudência que faz o número de vítimas do descaso ser superado a cada feriado prolongado. As proporções do desastre podem ser medidas pela situação de Minas, com a maior malha viária nacional. Apenas no ano passado, foram 1.344 mortos nos caminhos que cortam o estado, número que, sozinho, já se aproxima das primeiras estimativas de vidas tragadas pelo desastre natural no extremo oposto do planeta.
Mas, em contraste com a imprevisibilidade das forças da natureza, os ingredientes dessa receita mortal brasileira são bem conhecidos: rodovias sinuosas, pistas malconservadas, inexistência de equipamentos como divisórias centrais e sinalização precária. Para usar essa estrutura, veículos leves em número a cada ano maior e cada vez mais potentes, sem contar os de carga e de transporte coletivo de passageiros. Com porções generosas da irresponsabilidade de motoristas e do descaso da União com as BRs mineiras, o resultado são dados como os que contabilizam 27.366 acidentes nos limites de Minas em 2010, que, além dos mortos, deixaram 16.695 pessoas feridas. A média geral nas BRs do estado, de 3,6 mortes por dia, ainda não inclui as registradas do Anel Rodoviário de Belo Horizonte, onde houve 39 óbitos no ano passado em apenas 26,5 quilômetros do corredor mais movimentado da capital, com fluxo diário de 120 mil automóveis.
O drama que espalha luto não só pelo estado, mas em todo o país, se repete em 2011, principalmente nos feriados prolongados. Em seis dias da Operação Carnaval (4 a 9 de março), a Polícia Rodoviária Federal (PRF) registrou 29 mortes nas BRs. Houve mais sete nas rodovias federais delegadas ao estado, totalizando 36 óbitos. Por trás dos números, famílias que continuam sendo despedaçadas, como a da médica Sílvia Bastos Heringer, que perdeu dois filhos, de 8 e 11 anos, e a mãe, de 66, na batida frontal entre o Meriva em que as vítimas viajavam e um caminhão na BR-381, em São Gonçalo do Rio Abaixo, na Região Central, em 26 de janeiro. O motorista do veículo de passeio e amigo da família, de 57 anos, também perdeu a vida no violento trecho entre BH e João Monlevade, conhecido como Rodovia da Morte. Foi exatamente nas curvas da BR-381 que a PRF registrou a maioria dos óbitos no ano passado: 334.
O governo federal assiste, inerte, a essa previsível carnificina. Prometida há mais de oito anos, a duplicação da 381, entre a capital e Governador Valadares, no Vale do Rio Doce, continua no papel. O descaso com as rodovias federais, no entanto, pode ser contado em décadas, como testemunham especialistas no setor.
A dor por trás dos números
A negligência e inoperância do poder público, que relegam ao abandono algumas das mais críticas rodovias federais que cortam Minas Gerais, marcam para sempre a história de milhares de famílias. O sentimento daqueles que perderam parentes em desastres nas BRs é uma mistura de lamento, medo e revolta. Nossa reportagem ouviu familiares das vítimas de alguns dos mais recentes acidentes registrados nas rodovias mineiras, que, além da dor, têm em comum uma exigência: a de mudanças que ponham fim à carnificina nas estradas.
Um quadro de violência que interrompe o futuro de jovens como Ana Beatriz Bittar Gimenes, de 19 anos. Ela saiu de Franca (SP) em 4 de março para curtir o carnaval em Ituiutaba, no Triângulo Mineiro. Na BR-365, entre Uberlândia e Monte Alegre, um choque frontal com um caminhão interrompeu o futuro da jovem e de outros quatro amigos que a acompanhavam, todos com idades entre 19 e 20 anos.
Ana acabara de ingressar no curso de jornalismo e vivia um momento definido como mágico pelo tio Rafael Villela Bittar, de 45 anos. “É uma dor horrível, que não tem cura, não tem remédio”, descreve. Os pais da estudante, que insistiram até o último minuto para que ela não viajasse, continuam em estado de choque. “Eles terão de ser fortes para superar isso. Somos uma família muito católica e a Ana está nas mãos de Deus”, tenta consolar-se o tio.
Na opinião de Bittar, caso a BR-365 fosse uma rodovia duplicada, sua sobrinha poderia estar hoje em Campinas (SP), onde estudava. “As estradas em Minas estão uma calamidade. Falta governo, falta atitude. Moro em Franca, em São Paulo, e nossas rodovias são duplicadas e muito melhores”, critica o tio. Ele aponta ainda a imprudência de motoristas como uma das causas das constantes tragédias nos perigosos caminhos mineiros.
Na sinuosa, movimentada e estreita BR-381, em São Gonçalo do Rio Abaixo, na Região Central do estado, a médica Sílvia Bastos Heringer perdeu de uma só vez os filhos Luiz Heringer Walther, de 8 anos, e Lucas Heringer Walther, de 11, além da mãe, Noady Bastos Melo Heringer, de 66. A colisão frontal com um caminhão ocorreu em 26 de janeiro e matou ainda o motorista do veículo, Geraldo José dos Santos, de 57 anos. Novamente, a evidência de que uma mureta divisória poderia evitar a colisão frontal. “Foi o cenário mais chocante que já vi. Fiquei chorando uma semana”, relembra o médico Lassy D’Ávila Heringer, primo de Sílvia, que esteve no local logo depois do acidente.
Heringer não poupa críticas ao governo federal. “A duplicação da BR-381 é prometida há mais de oito anos. O problema é que faltam estadistas no país. Infelizmente, ninguém aqui investe em infraestrutura”, afirma o médico, confessando o medo de transitar pela 381, conhecida nacionalmente como Rodovia da Morte, pois não sabe se voltará para casa.
A médica ainda não assimilou o duro golpe e está extremamente abalada. “Ela não está em condições de fazer nada”, conta Heringer. Sílvia não entrou no carro que partiu de Belo Horizonte rumo a João Monlevade, na Região Central, devido ao excesso de bagagens. Ela retornava da Europa, onde havia passado as férias com as crianças. A mãe, Noady, foi buscá-la no aeroporto. Viajando em um ônibus, a médica ficou presa no engarrafamento causado pelo acidente com seus parentes.
Quem também busca forças para superar a perda de dois familiares, no trágico acidente de 28 de janeiro no Anel Rodoviário de Belo Horizonte, quando uma carreta bitrem desgovernada e a 115 km/h arrastou 15 carros, matando cinco pessoas e ferindo 12, é o motorista Ricardo Geraldo do Santos, de 32. O filho dele, que faria 13 anos dias depois, e a mãe, de 68, morreram no local do acidente, na temida descida do Bairro Betânia, na Região Oeste da cidade, sentido Vitória.
Ricardo e a mulher, Wandercy Barreto da Silva, de 45, seguiam com o único filho e a mãe do motorista para a Igreja de São Judas Tadeu, no Bairro da Graça, Nordeste da capital. O Gol da família estava parado numa retenção do Anel e foi atingido pela bitrem. “Só senti um impacto forte e, quando assustei, eles já estavam mortos. Não tinha como fazer mais nada.”
As marcas do acidente ainda são fortes na memória de Ricardo, que ainda não passou pelo Anel Rodoviário depois da tragédia. “A imprudência impera no Anel, mas as condições estruturais da via também deixam muito a desejar. Trabalho dirigindo caminhão e, por onde passo, percebo que as rodovias são muito inseguras. Nada é feito para resolver o problema”, disse o motorista. Há 15 dias, seu advogado entrou com ação indenizatória contra a empresa proprietária da carreta bitrem.
Outra família que não consegue se conformar com a violência das estradas mineiras é a do pintor João Evangelista de Lima, de 46, morto em 22 de fevereiro na BR-262, no trevo de São Gonçalo do Pará, na Região Centro-Oeste. “Ele estava de moto e foi atingido por um veículo. Quando caiu, veio outro carro e o atropelou. Meu irmão era motoqueiro experiente, mas foi vítima da falta de sinalização na BR. Tinha apenas um ano e meio de casado e deixou uma filha de 5 meses”, lamentou auxiliar de produção Luiz Carlos de Lima, de 44.
Tragédia nas BRs
Em 2010, 1.344 pessoas morreram e 16.695 ficaram feridas em 27.366 acidentes nas estradas federais mineiras. Confira os trechos mais violentos
Mortes por rodovias
BR-381 (de BH para Vitória e São Paulo): 334
BR-116: 247
BR-040 (de BH para o Rio de Janeiro e Brasília): 217
BR-262: 125
BR-365: 88
BR-135: 61
BR-251: 58
BR-050: 53
BR-153: 50
BR-267: 34
BR-452: 22
BR-459: 21
BR-354: 10
Br-364: 10
BR-356: 5
BR-146: 4
BR-460: 3
BR-474: 2
Fonte: PRF
Projetos de duplicação vêm de 1970
Os projetos de duplicação das mais importantes rodovias do país, todas passando pelo território mineiro, existem há décadas. Mas não saíram do papel a tempo de poupar milhares de vidas. “No início da minha carreira, eu trabalhava como desenhista na primeira empresa de consultoria de projetos rodoviários do Brasil, quando o governo militar apresentou, na década de 1970, planejamento para duplicar as rodovias chamadas tronco, de maior movimento, como as BRs 381, 116, 040 e 262. Mas, até hoje, só foram feitos paliativos. Não se vê empenho da União em solucionar os problemas da falta de segurança das estradas. Por estar no eixo central da malha rodoviária nacional, Minas tem a maior perda com esse descaso”, criticou o engenheiro civil Márcio Aguiar, mestre em transportes e professor da Faculdade de Engenharia e Arquitetura da Universidade Fumec, denunciando 40 anos de omissão.
O especialista ressalta que, além das mortes, a falta de estrutura das rodovias federais provoca vultosas perdas econômicas, causando prejuízos a empresas que dependem das estradas para escoar seus produtos, devido à precariedade de outros meios de transporte de carga. Márcio Aguiar lamenta a subutilização do valor arrecadado com a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide-Combustível) em melhorias estruturais das BRs, como determina a Lei 10.336/2001, que criou o tributo. “Ou o governo federal é muito lento, ou não quer resolver o problema. Sabemos que há mais de R$ 150 bilhões acumulados com a arrecadação da Cide desde sua criação. Portanto, não falta verba. Porque ficam nessa paralisia? A maior incompetência é ter dinheiro e não gastá-lo.”
Para o deputado federal Rodrigo de Castro (PSDB-MG), o governo federal deveria repassar o recurso para que os estados executassem as obras nas BRs. “Os números assustadores de mortes em acidentes confirmam a inoperância da União e o esgotamento adotado por ela para administrar as rodovias. Nem radares para evitar as tragédias é capaz de instalar, quanto mais fazer obras de duplicação com esse cronograma patético que apresentou”, disse.
Expectativa diante de uma nova promessa
A promessa do governo federal de iniciar neste ano as obras de duplicação da BR-381, no trecho de 110 quilômetros entre Belo Horizonte e João Monlevade, na Região Central de Minas, feita no início deste mês, é uma esperança para que as tragédias nas rodovias federais que passam pelo estado sejam reduzidas. Na ocasião, o diretor-geral do Departamento Nacional de Infraestrutura em Transportes (Dnit), Luiz Antônio Pagot, garantiu que as obras no Anel Rodoviário de BH também vão começar em 2011, assim como a adequação da BR-040, entre os municípios de Ouro Preto e Ressaquinha.
O Dnit ressalta que várias rodovias federais mineiras estão sendo duplicadas ou têm cronograma definido, com previsão do início das obras ainda em 2011. É o caso de trechos das BRs 365, 050, 153 e 262. O departamento informou que, neste ano, cerca de
R$ 3 bilhões estão sendo investidos na modernização e restauração das BRs que compõem a malha viária mineira. Ainda segundo o Dnit, mais R$ 2 bilhões devem ser liberados para obras semelhantes.
O engenheiro civil Márcio Aguiar, mestre em transportes e professor da Faculdade de Engenharia e Arquitetura da Universidade Fumec, destaca que a duplicação de rodovias consiste na criação de duas faixas de rolamento, mais área de acostamento, em cada sentido. Além disso, as pistas devem ser separadas por barreiras físicas, como muretas de concreto ou canteiro central. “Duplicação não é o que fizeram na BR-040, do trevo de Ouro Preto a Congonhas. Naquele trecho, o acostamento passou a ser usado como uma das duas faixas e as pistas são divididas apenas por tachões (pequenos obstáculos presos ao asfalto). As pontes também devem ser duplicadas.”
Além das obras de duplicação, o especialista afirma que são necessárias melhorias estruturais nos trechos urbanos das rodovias federais, onde há travessia de pedestres, garantindo mais segurança. “Também é preciso reativar as balanças, pois os caminhões trafegam com carga excessiva e causam danos ao pavimento”, concluiu.