Cinco anos à frente do principal órgão de trânsito do Brasil, o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), Alfredo Peres da Silva deixou o cargo em dezembro, com a mudança de governo, e fala agora pela primeira vez à imprensa, nesta entrevista concedida a Veículos. Um dos diretores que mais tempo permaneceu no departamento, Peres teve a gestão marcada, entre outras coisas, por normas de segurança, como a exigência dos crahs-tests laterais e a obrigatoriedade dos freios ABS e airbags. Respira aliviado pelo reconhecimento da importância do uso dos dispositivos de retenção infantil, mas confessa que precisava de mais tempo para ter exigido encostos de cabeça e cintos retráteis de três pontos para todos os ocupantes dos automóveis. Sobre o recente Pacto Nacional pela Redução de Acidentes de Trânsito, ele enfatiza a necessidade de mais fiscalização de rua, já que só radares não resolvem o problema. E não deixa de comentar mazelas, como a pequena estrutura do Denatran, que impede, por exemplo, a fiscalização com mais afinco dos detrans. Do outro lado da mesa, como ele diz, Peres continua no setor de transportes, como vice-presidente regional da NTC & Logística: “Brinco que voltei a ser cliente do Denatran”.
De 2006 a dezembro do ano passado, foram publicadas 185 resoluções pelo Conselho Nacional de Trânsito (Contran), como consequência de sua administração. Que temas eram mais importantes?
Assumi procurando garantir maior segurança veicular. Também foi feita a regulamentação de áreas de transporte específico, como o de toras e de blocos de concreto. Conseguimos o detalhamento dos sistemas eletrônicos e mais segurança na emissão dos documentos. Verificamos a base das carteiras. Antigamente, se havia mudança de estado, não era carregado o histórico do condutor. Agora, existe esse histórico, que vai desde a autoescola. Todas as informações sobre aulas, exames e instrutores ficam em base nacional. As falsificações e as vendas de carteira continuam, mas fica o rastro e é fácil pegar. Além disso, cada vez que é emitida uma carteira ou um certificado de veículo, o sistema gera um dígito verificador e qualquer pessoa pode checar se a carteira é fria ou não, pelo site do Denatran. Também persegui a regulamentação de artigos do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) pendentes e a análise das resoluções anteriores, se valiam ou não. Sempre digo que o Denatran é um grande prestador de serviços. Se deixar de funcionar, o Brasil para. E é um órgão que tem um monte de atribuições e uma estrutura pequena. Tem que fiscalizar os detrans, os órgãos municipais e ter condições de intervir quando constatado algo errado.
E isso aconteceu em sua gestão?
Não... digo que isso é uma bomba atômica. Você tem que dizer que tem e não pode usar. Para uma intervenção desse tipo tem que falar com ministro, presidente da República... Há muitos casos em que o estado tem que cumprir certos quesitos e muitos detrans não querem cumprir. Exemplo: a transferência de propriedade. O carro foi vendido, foi comunicada a venda pelo proprietário anterior, mas não foi transferido. E os detrans não consultam nossa base e continuam emitindo multas para o proprietário anterior, enquanto deveriam mandar para o atual. Vai chegar uma hora em que o Denatran terá que proibir esses detrans de fazer transferência. Outro exemplo são as estatísticas de trânsito. Muitos detrans diziam que não enviavam porque o Denatran não tinha um sistema. Pois bem, construí o sistema, mas continuaram não mandando porque muitos municípios não mandavam. Cheguei a ser criticado porque disse que não usaria estatísticas do Denatran porque não funcionavam. Preferi as do Ministério da Saúde.
Mas, se é complicado intervir nos detrans, qual a solução?
Nesse caso das estatísticas, uma coisa que está para ser feita é um convênio do INSS com o Ministério das Cidades, para que o Denatran receba informações sobre os óbitos e dê baixa nas carteiras. Os órgãos federais têm que se auxiliar. Precisa haver um aperfeiçoamento e o Denatran precisa de mais estrutura, de uma equipe coesa. Posso dizer que, felizmente, está bem melhor do que quando entrei. Recebemos técnicos de alto nível, que foram ocupando os espaços. Mas esse pessoal trabalhou comigo no limite.
Em sua administração, entraram em vigor as resoluções que, em breve, obrigarão freios ABS e airbags em todos os veículos, além dos crash-tests laterais. Foi grande a resistência da indústria automotiva?
A resistência é natural, pois vai onerar... E uma das coisas que eu queria era o crash-test lateral, para saber sobre os danos aos ocupantes. E a indústria disse que precisava de cinco anos. Então eu disse, OK, vamos regulamentar agora e dar esse prazo. Foi o que aconteceu também com as cadeirinhas. Você tem que ter um prazo para negociação. Uma coisa que sempre procurei fazer: se não dá para chegar no ótimo, pelo menos precisamos começar. Mesmo sabendo que haverá imperfeições.
A resolução dos dispositivos de retenção para crianças (bebê conforto, cadeirinhas e assento de elevação) recebeu críticas exatamente porque entrou em vigor e começaram as exceções...
Sabíamos que iríamos receber críticas, principalmente por não ter englobado o transporte escolar e os táxis. Estudamos bem a legislação, inclusive no exterior, e sabíamos que precisaria haver adaptações nos veículos, como no caso dos que têm cinto abdominais. Mas não dá para fechar tudo. Tínhamos que fazer, senão não saía. Outra coisa que nos pegou de surpresa é que existia cadeirinha para cinto abdominal, mas o pessoal saiu do mercado. Então tivemos que flexibilizar. Mas o transporte escolar vai ser regulamentado. Isso está sendo desenhado com o Ministério da Educação. Está sendo discutida, inclusive, a ancoragem do cinto, que terá que ser de três pontos. Imagine como vai mudar a fabricação dos ônibus. E, além disso, é preciso ver o que acontece com os que já estão em circulação.
Durante sua gestão, a Resolução 214 tentou por fim à farra dos radares, voltando com a exigência das placas de aviso de fiscalização eletrônica. Imagino que isso deve ter gerado resistência...
(risos) Essa discussão está até hoje... Mas agora é outra. Atualmente existe GPS até nos celulares. E todos listam os radares. Isso gerou outra discussão se seria legal ou não. Mas chegou-se à conclusão de que não é ilegal. E em breve deve ocorrer a implantação do Siniav, que vai detectar a identidade do carro cada vez que passar pelas antenas. E, pela velocidade média, poderão ser medidos pontos do percurso, e será fácil constatar se houve excesso de velocidade. Isso demandará outra alteração no CTB e será regulamentada a velocidade média. Mas a preocupação não tem que ser só com radar. Para o Pacto Nacional pela Redução de Acidentes de Trânsito, lançado este mês, o Brasil tem que reduzir as mortes em 30% até 2020. E não é só velocidade que mata. Há outros itens, mais graves e que não são fáceis de fiscalizar: cinto de segurança, cadeirinha, capacete e bebida. Isso só se resolve com abordagem. Precisa haver fiscalização de rua.
Se tivesse que destacar algo que mais o deixou realizado dentro do Denatran, o que seria?
Fiquei feliz da vida quando um órgão de imprensa citou entre as 10 melhores leis do ano passado a obrigatoriedade da cadeirinha. Outra conquista foi a do ABS e airbag. A indústria reclamou muito. Mas foram obrigados a fazer. Se 63% da frota de veículos hoje é de populares, por que não merecem mais segurança? Antes de decidir sobre a obrigatoriedade do ABS, eu e os conselheiros do Denatran dirigimos, em teste, carros com e sem os freios ABS. Quando terminou o teste, a pergunta foi: onde eu assino?
Mas faltou exigir encostos de cabeça e cintos de três pontos para os passageiros do meio, não é?
Olha, exatamente. Se você me perguntar o que faltou... É o que pesou. Inclusive, já falei com o Orlando (Orlando Moreira, que assumiu a diretoria do Denatran depois da sua saída): deixe sua marca. O apoio de cabeça para o passageiro do meio e o cinto de três pontos – e retrátil – para todos os passageiros são coisas que ficaram faltando. Ou melhor, não deu tempo. E toda a indústria já achou a solução para isso. Tanto que os carros mais modernos e caros já têm. Esse problema da ancoragem do cinto no meio, que era alegado, já está resolvido. O que falta é tornar obrigatório. Mas a discussão já começou.