Pode ser considerada ilegal, na opinião de especialistas em direito de trânsito e do consumidor, a atitude da Polícia Rodoviária Federal (PRF) de cobrar, de milhares de supostos infratores, multas que não foram quitadas desde 2005. Na última quarta-feira, a corporação notificou, por meio do Diário Oficial da União (DOU), 150 mil motoristas em todo o Brasil que, desde 2005, por razões diversas (endereço errado ou insuficiente, recusa no recebimento etc.), deixaram de receber, em domicílio, a notificação da autuação (primeira notificação) ou da penalidade (multa propriamente dita) e não recorreram ou não pagaram a multa. Além disso, o órgão informou que, até o fim de maio, outros 850 mil proprietários de veículos poderão ainda ser notificados da mesma forma. No geral, os débitos não pagos à PRF superam os R$ 100 milhões.
Embora a PRF tenha aberto novo prazo para recurso nas duas situações ? notificações em fase de defesa prévia (15 dias contados da data de publicação do edital, em 24 de março) e notificações da penalidade (30 dias para recurso à Junta Administrativa de Recursos de Infrações/Jari para aquelas que já viraram multa e, nesse caso, obrigatoriamente a corporação teria que comprovar o envio da primeira notificação) ?, a atitude, aparentemente inusitada, já gera dúvidas e protestos.
"Se as notificações foram enviadas para o endereço correto (pelo Código de Trânsito Brasileiro/CTB, se o motorista não informa a mudança de endereço perde todos os direitos), não vejo motivo para publicação no DOU. Acredito que o grande problema foi o seguinte: durante esse tempo houve muitas situações em que a PRF não tinha convênio com os estados e, portanto, as multas não apareciam nos sistemas dos Departamentos Estaduais de Trânsito (Detrans). Então, agora, essa foi uma maneira que a PRF arranjou para corrigir as falhas, que não está disposta a assumir", afirma o advogado e professor de direito de trânsito Marcelo José Araújo.
O também advogado Fábio Vicente Souza, especialista em trânsito, acrescenta que, no âmbito do direito administrativo, o prazo para publicação em edital é de 90 dias, não fazendo sentido a publicação tanto tempo depois. "Fere o artigo 37 da Constituição Federal no que diz respeito à publicidade", diz. Ele pondera, ainda, que a atitude da PRF esbarra no problema da prescrição, que ocorre em cinco anos, conforme a Lei 9.873/1999: "Prescreve em cinco anos a ação punitiva da administração pública federal, direta e indireta, no exercício do poder de polícia, objetivando apurar infração à legislação em vigor (?)". A mesma lei, inclusive, é citada pelo Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) como orientação a ser seguida pelos demais órgãos, uma vez que o CTB não menciona nada a respeito.
Novo proprietário
Mas o que pode ser o mais grave dos problemas consiste na cobrança das multas nas situações em que o carro já foi vendido, decorrente exatamente do fato de não terem sido inseridas nos sistemas dos Detrans. Pelo CTB, a multa acompanha o veículo e, portanto, para os carros que tenham sido transferidos nesse período aparecerá a pendência, agora cobrada de um novo proprietário, que nada teve a ver com a autuação. A PRF, aliás, é categórica ao afirmar que "quem adquire o veículo assume todos os ônus, inclusive multas". Injustiça que não pode ser corroborada de maneira tão simples e que, de acordo com especialistas no assunto, é motivo para que o dono do veículo recorra à Justiça.
Marcelo Araújo lembra que, pelo artigo 131 do CTB, ?o veículo somente será considerado licenciado estando quitados os débitos relativos a tributos, encargos e multas de trânsito?. Logo, se foi licenciado durante todo esse período, ou até transferido (para o que vale a mesma regra), não é razoável a cobrança dessas multas anos depois. "Isso é transferir a responsabilidade para o atual proprietário, que não tomou conhecimento da infração. O que é injustificável, pelo fato de a PRF não ter feito convênio com os Detrans", diz. Entendimento que, inclusive, é também do Denatran, que, por meio da assessoria de imprensa, e sem entrar no mérito da PRF, afirmou que, de maneira geral, nos casos em que há erros dos órgãos de trânsito o cidadão não pode ser prejudicado.
Ação civil pública
"Não se pode incluir restrição no veículo que já foi licenciado ou transferido. Isso pode gerar diversas ações por abuso. Veja só: eu comprei o carro, não tinha multa, como vai aparecer depois? Isso é um absurdo", acrescenta o advogado e deputado Délio Malheiros, presidente da Comissão de Defesa do Consumidor e do Contribuinte da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). Ao tomar conhecimento da atitude da PRF, Malheiros a considerou preocupante. Ele então preparou documento de representação, que foi encaminhado ao Ministério Público Federal ontem, sugerindo o ingresso com uma ação civil pública contra a medida. "Mostra que existe um objetivo claro de dificultar a defesa do eventual infrator, pois como alguém, notificado cinco anos depois, vai apresentar uma defesa? O motorista nem se lembra mais do local onde teria ocorrido a infração", pondera.
Para ele, se existe uma norma que obriga a atualização de endereço (o que, inclusive, exclui o direito de defesa do motorista que mudou e não avisou ao Detran do estado onde reside) e não houve como notificar os motoristas, o que ocorreu foi por ineficiência do órgão de trânsito. "Se tivessem publicado o edital logo depois de essas notificações terem sido devolvidas, faria sentido. Mas, cinco anos depois? Isso é um abuso de autoridade. Quando chegar à Justiça vai cair", afirma.
Entramos em contato com a PRF, que não respondeu aos questionamentos até o fechamento desta matéria.
Serviço
Para saber se o nome está entre as pendências com a PRF, o proprietário de veículo tem, além da consulta ao DOU da última quarta-feira, a possibilidade de, via internet, acessar o endereço www.in.gov.br., selecionando "pesquisa nos jornais", opção "suplementos", item ?Suplemento DPRF - DOU 3?. A pesquisa pode ser feita pela placa ou CPF/CNPJ. Segundo a PRF, haverá publicações semanais, com nomes de novos motoristas, possivelmente até o fim de maio, e os editais serão veiculados em suplemento do DOU, seção 3. Consultas também podem ser feitas no site da PRF (www.dprf.gov.br.), em até três dias depois de cada publicação, onde também estão os formulários para defesa da autuação, recurso e indicação do condutor infrator. Também podem ser consultadas as superintendências regionais por e-mail. Em Minas, nmp.mg@dprf.gov.br.