Vítima duas vezes da ineficiência do Estado, o estudante de administração Adams Alves Pedroza, depois de ter passado pela aflição de um assalto à mão armada, ainda corre o risco de ficar sem o carro roubado (ou de ter que pagar caro para tê-lo de volta), mesmo depois de ele ter sido encontrado e comprovada a propriedade. E Adams é apenas um entre os vários proprietários de veículo que não conseguem regularizar a situação do automóvel, depois de recuperado, tamanha a eficiência dos bandidos na adulteração dos componentes do carro e a complexidade das leis, que dificultam a legalização do óbvio.
Há cinco anos, Adams Alves Pedroza foi abordado por dois supostos compradores de seu VW Golf preto 2001, quando foi anunciado o assalto e levado o carro. Cinco meses depois, seu irmão visitava a feira do Mineirão e notou um veículo à venda com as características do Golf roubado. Adams, que tinha a chave reserva, chegou rapidamente à feira. Os dois se aproximaram do vendedor e chamaram a polícia. Além de detalhes como arranhados na porta e amassado no capô, que possibilitaram a Adams reconhecer o carro, a chave reserva, que é codificada, abriu e ligou o veículo. O carro, apreendido, foi levado à Delegacia Especializada de Repressão a Furto e Roubo de Veículo e instaurou-se um inquérito. O veículo estava todo adulterado (chassi, motor, vidros etc.). A placa e o documento pertenciam a outro VW Golf preto.
LAUDO
Só um ano depois do assalto, em junho de 2007, foi feita perícia pelo Instituto de Criminalística da Polícia Civil. O laudo, ao qual a reportagem teve acesso, é claro: “Por todas as constatações verificadas, são de parecer os peritos em afirmar. com certeza, que o veículo objeto de exame não é o registrado em nome do senhor V. (homem que vendia o carro na feira), e sim o veículo do senhor Adams”.
A perícia, feita dentro de concessionária VW com o intuito de se terem os subsídios do fabricante, constatou fatos como a divergência no código da cor do veículo ao confrontar os dados originais do Golf de Adams com os dados referentes ao Golf “dono” da placa fria e chassi transplantado: “Embora fossem ambos pretos, o Golf registrado em nome do senhor V., que deveria ter pintura preta metálica, código Z4Z4 (black magic), apresentava pintura preta lisa, código A1A1 (preto ninja), coincidente com a pintura do veículo do reclamante”. Com relação ao chassi, também não restou dúvida: “Foi notado ter sido transplantado de outro veículo. (...) A parte da chapa que continha a numeração teria sido transplantada de forma perfeita, mas deixando vestígios que levaram os peritos a afirmar categoricamente essa operação”.
ATÉ HOJE
Entregue o laudo, em outubro do mesmo ano, Adams foi nomeado depositário fiel do carro, devendo levá-lo para casa e guardá-lo, porém, sem nunca poder usá-lo, já que o carro não foi regularizado. Não tem placa nem documento. E desde então, há quase quatro anos, fica parado em sua garagem.
O inquérito gerou um processo, que tramita na Vara Criminal de Inquéritos Policiais da Comarca de Belo Horizonte e apura culpa dos envolvidos no roubo. Até o contato com a reportagem, Adams acreditava que, por mais lento que fosse, quando concluído o processo teria o carro de volta. Não é bem assim.
SÓ NA JUSTIÇA
Segundo o delegado chefe da Coordenação de Operações Policiais (COP) do Detran-MG, Ramon Sandoli, a regularização do carro seria simples e poderia ser feita dentro da esfera administrativa se restarem pelo menos dois componentes de identificação não adulterados no automóvel, como chassi, motor, numeração dos vidros, etiqueta óptica, o que não ocorre com o Golf de Adams, que foi totalmente adulterado. A exigência se dá pela Portaria 59.388/97 do Detran-MG, e não sendo possível cumpri-la, só resta a Adams contratar um advogado e entrar na Justiça para poder usar o próprio carro.
No entanto, segundo os advogados Gustavo Americano Freire e Adriano Andrade Muzzi, do escritório Silva Freire Advogados, que analisaram o caso a pedido da reportagem, tal portaria é abusiva. “Hoje, existe uma tendência dos tribunais em aplicar os valores constitucionais na relações privadas, em especial os princípios da proporcionalidade e razoabilidade. E essa norma não é razoável”, afirma Gustavo.
Aliás, acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais garante a remarcação dos caracteres identificadores do veículo, quando adulterados por criminosos, desde que haja provas suficientes sobre a propriedade, sem a necessidade de se cumprirem as exigências da Portaria 59.388/97. “Mais do que abrir um precedente, isso significa que, apesar de existir uma portaria que exige vários requisitos, o Poder Judiciário já tem ido contra a portaria, caso seja comprovada a propriedade do veículo”, explica a advogada Luciana Mascarenhas, do Mascarenhas e Associados, que também analisou o caso a pedido da reportagem.
SITUAÇÃO COMUM
De acordo com o delegado chefe da Coordenação de Operações Policiais (COP) do Detran-MG, Ramon Sandoli, casos como o de Adams, em que o veículo é recuperado, mas com todos os componentes de identificação adulterados (ou restando apenas um original), são comuns. Situação em que o proprietário do veículo se vê obrigado a acionar a Justiça. Já nas situações em que há pelo menos dois componentes originais, pela Portaria 59.388/97, o Detran-MG regulariza o carro de maneira administrativa. O proprietário deve comparecer à unidade da Gameleira com os documentos do veículo (CRLV, tributos quitados, negativa de multas), cópia da ocorrência, nota fiscal dos componentes a serem substituídos (em qualquer situação, é o proprietário do veículo quem arca com os custos das novas peças a serem regularizadas), requerimento pedindo a remarcação e informando o motivo. Pode ainda ser exigido do fabricante os números originais de identificação do veículo.
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