Somente este ano, quase 800 mil (788.031) veículos com defeito vendidos no Brasil foram chamados para recall (convocação feita pelo fabricante ou fornecedor para reparo ou troca de produto com falha que atinge a segurança), de acordo com o banco de dados da Fundação Procon SP. O número decorre de 39 campanhas, sendo 33 relativas a automóveis, cinco a motocicletas e uma a caminhões e ônibus, e equivale a 75% das convocações de recall para produtos em geral no Brasil de janeiro até o último dia 10. A quantidade de unidades com falhas até o momento já é superior ao total de veículos chamados para recall em todo o ano passado, que foi de 675.503. E, além disso, o apanhado dos últimos 10 anos revela que o primeiro semestre de 2014, apesar de não ser o que tem mais unidades de veículos envolvidas em recall, é o com maior número de campanhas. Se por um lado o recall é uma conquista do consumidor, por outro o número crescente de campanhas assusta. E ainda mais quando se vê que carro com defeito de fábrica não é característica de país tupiniquim. Haja vista o sufoco por que passa a matriz da General Motors nos Estados Unidos, depois do escândalo relacionado a 3,6 milhões de veículos com defeitos na ignição, que resultou em acidentes com mortes e levou a demissões dentro da empresa.
“A ocorrência do recall, que veio com o Código de Defesa do Consumidor, é benéfica porque tem o objetivo de reparar os carros e evitar acidentes, mas, por outro lado, há uma questão envolvendo o controle de qualidade dos produtos”, avalia o diretor de fiscalização do Procon SP, Márcio Marcucci, acrescentando que, em grande parte, o aumento dos recalls se deve ao avanço da complexidade tecnológica nos veículos. Ele lembra também que o Brasil é o quarto mercado no segmento, com concorrência forte e um grande número de montadoras que entraram no país nos últimos anos. “O mercado é concorrente. A cada momento são lançados novos modelos, com novos equipamentos e cada vez em prazo mais curto. Isso aumenta a probabilidade de sair veículo com defeito”, reforça.
ELETRÔNICA “Ao convocar o recall, a montadora não faz mais do que a obrigação”, afirma o diretor da Sociedade de Engenheiros da Mobilidade (SAE Brasil), Francisco Satkunas, com larga experiência na indústria automobilística. “Um consumidor que tem dois, três carros na garagem pode até não ligar. Mas aquele que compra um carro popular, com todo o esforço, e fica sabendo que deverá levá-lo para o recall não gosta e ainda se preocupa com a desvalorização do veículo”, acrescenta. Para o engenheiro, a eletrônica embarcada tem sido a grande vilã. “Os automóveis hoje têm mais computadores do que a nave espacial que levou o homem à Lua. Tudo é controlado por computador: o motor, os vidros e travas elétricos, o ar-condicionado digital, o sistema de GPS etc. E isso gera muitos recalls”, observa. Assim como o diretor do Procon SP, ele acredita que a velocidade dos lançamentos é outro fator que contribui para o aumento das falhas, algumas decorrentes de erros de engenharia. “As fábricas não fazem uma validação intensiva. Trabalham com 99% das condições e o 1% que não foi testado apresenta problema”, acrescenta.
Na opinião de Satkunas, os erros de engenharia são responsáveis por cerca de 10% dos recalls. Outros 20% decorrem de problemas na montagem de fábrica e a maior parte, 70%, vem de peças de fornecedores. Ele aponta, ainda, um importante fator psicológico: “A linha de montagem tem um ritmo. Quando a indústria está aquecida e há aumento brusco na produção, os operários têm que trabalhar mais rápido e obviamente há sobrecarga. Por outro lado, em tempos de poucas vendas, a produção cai e o operário tende a ficar ocioso. É claro que isso tem reflexo, pois, se caem as vendas, o emprego está em risco. E isso ocorre tanto dentro das montadoras quanto nas linhas dos fornecedores”.
SEM PERFEIÇÃO “Isso de lançar rapidamente os carros realmente influencia. Mas se a montadora fosse atrás da perfeição, nunca iria conseguir lançar. A fábrica precisa apostar num nível de falha aceitável, senão nunca vai produzir um carro”, observa o consultor Rexford Parker, que atuou como projetista e planejador durante 35 anos em montadoras dos EUA. Ele conta que os recalls por lá começaram em 1966 e desde então já foram detectados 390 milhões de unidades com defeito, número superior à frota atual norte-americana, que é de 246 milhões, com idade média de 11 anos. A idade da frota, aliás, é outro ponto a ser considerado: “A frota está envelhecendo e, com isso há mais tempo para os defeitos aparecerem”. A complexidade tecnológica, a exigência dos consumidores e do próprio governo, além do natural crescimento da frota, são outros fatores a serem considerados na opinião do ex-projetista.
“E existe mais uma coisa: o recall só serve quando os consumidores levam os carros para o reparo, e isso nunca ocorre em 100%. E então muitos carros continuam defeituosos”, diz. “Além disso, quem garante que a peça nova é melhor do que aquela que estava com defeito? Ninguém sabe”, pondera. O que, inclusive, poderia ter que originar novo recall. A ponderação de Parker remete ao calvário por que estão passando montadoras japonesas, obrigadas a reconvocar ou ampliar recall para troca de airbags. Há pouco mais de um ano, marcas como Toyota, Honda, Nissan e Mazda chamaram para inspeção e troca da bolsa defeituosa. Mês passado, informadas pela empresa Takata, fornecedora dos airbags, de que a numeração de série das bolsas problemáticas estava incorreta (o que significa que nem todas haviam sido trocadas), tiveram que convocar novo recall.
Memória
Interferência nos computadores?
Se hoje a má fase é da GM, em 2010, a Toyota é que foi assombrada por escândalos relacionados a recalls nos EUA e no mundo. O mistério da aceleração espontânea do Corolla, cuja culpa foi jogada literalmente para cima dos tapetes, ainda é motivo de discussão no meio automotivo. Mas para o consultor Rexford Parker, pode haver uma explicação: “Os carros de hoje são cheios de computadores. Aquele problema da aceleração não desejada da Toyota aconteceu perto de bases aéreas e navais dos EUA. Não duvido que a força armada tenha usado uma frequência tão exótica que possa ter penetrado nos computadores desses carros e afetado seu desempenho. Só que nem a Marinha nem as Forças Armadas vão dizer que frequências são essas e anunciar isso publicamente. E a Toyota não tem como dizer. Mas eu não duvido...”.