Enquanto as taxas de juros caem, os prazos de financiamento são cada vez mais longos. A entrada quase sempre é dispensada ou jogada para meses depois do fechamento do contrato, assim como o pagamento da primeira parcela. As facilidades são muitas e o consumidor, que hoje pode entrar numa concessionária e sair de carro zero sem desembolsar nenhum dinheiro, está sendo estimulado a comprar a prazo (e quase sempre sem saber a taxa de juros!). Sem contar os brindes oferecidos somente a quem financia. Mas todas essas vantagens - aparentemente para o consumidor - escondem enormes margens de lucro, garantidas às revendas pelos bancos, que ganham muito com as vendas a prazo.
O caderno Veículos, do jornal Estado de Minas, presenciou reunião entre concessionários, representantes de bancos e consultores de financiamento, que explicam como convencer o consumidor a financiar, em tempos em que comprar à vista é verdadeira ofensa às revendas de veículos. A estrutura é tão organizada que as concessionárias começam a ter setores específicos para o chamado F&I (do inglês, finance and insurance, que significa finanças e seguros), setor voltado para o aumento das margens de lucro, que atualmente estão, em sua maior parte, nas vendas financiadas.
ESTRATÉGIA
A primeira coisa é mostrar ao consumidor a vantagem de aplicar o dinheiro e financiar o veículo. "O cliente tem o dinheiro e pretende pagar à vista, pois não quer pagar juros, então você o convence com números", explica Daniel Brandão, da F&I Brasil. "Suponha que você tenha R$ 45 mil aplicados a 0,7%. Em três anos, serão R$ 57.846. Pelo carro, pagará juros de 1,4%, o que dá idéia de que vai gastar mais. Só que, multiplicadas as parcelas, por exemplo, de R$ 1.599,90 por 36 meses, o total é R$ 57.596. O valor financiado está menor do que o conseguido na aplicação e o consumidor se surpreende quando vê essa conta”, ressalta. "É uma oportunidade para o cliente investir em outras coisas, deixar o dinheiro rendendo", continua.
O segundo argumento é o da depreciação do carro. De acordo com Brandão, no mesmo prazo de 36 meses, um carro de R$ 45 mil estaria valendo R$ 27 mil (importante ressaltar que nem sempre esse tipo de depreciação ocorre, pois isso depende de vários fatores): "Se você comprou à vista e não aplicou o dinheiro, em três anos o patrimônio é somente o veículo: R$ 27 mil. Mas, se aplicou o dinheiro – e tendo em vista que a prestação não saiu da aplicação, mas da renda mensal do consumidor –, terá o valor do carro (R$ 27 mil) mais o que rendeu na aplicação (R$ 57.846), num total de R$ 84.846. Então você pergunta ao cliente: qual dos dois você prefere?".
"Com esses e outros argumentos, muitos concessionários conseguem atrair clientes para o financiamento e estão, muitos deles, dobrando o valor financiado", acrescenta o consultor de F&I Marcos Moreira. Uma vez tendo convencido o consumidor a financiar, o segundo objetivo da concessionária deve ser aumentar a base financiada, fazendo com que o cliente financie o maior valor possível do carro.
PRESSÃO
Em todo esse processo de convencimento, é preciso que o vendedor também esteja convencido de que financiar vale a pena. Assim, tem que ser feito um grande treinamento com os vendedores, além de muita pressão. "O vendedor e o operador têm que ser convencidos de que é melhor financiar. Senão, é muito fácil escorregar. Vai lutar contra", afirma Henrique Benini, da concessionária HPoint, de São Paulo. Na revenda, antes de fechar o negócio, todos os clientes conversam com um operador de F&I, responsável por tentar converter a venda em financiamento ou aumentar a quantia financiada, quando essa já for a opção do consumidor.
Daniel Sampaio, do grupo Indiana, conta a experiência numa revenda de Salvador. "Fizemos treinamento com vendedores e gerentes de carros novos e seminovos, criamos um quinto departamento na revenda, o de F&I, e definimos metas diárias. Uma delas é que a cada 100 vendas, 60 têm que ser financiadas e com financeiras que sejam nossas parceiras", diz. O gerente de vendas da concessionária Honda Beni Car, em Campinas (SP), Abraão Lincoln, conta que a revenda precisou quebrar um paradigma. "Pelo alto poder aquisitivo de nossos clientes, não se achava que seriam capazes de financiar. Há três anos, o índice era de 18%; hoje é de 65%", diz.
ABSURDO
A revenda também tem um departamento de F&I, pelo qual o cliente passa, se não for convencido pelo vendedor. Também é estimulada a competitividade entre os vendedores, que ganham presentes no fim do ano. A lucratividade é tão alta que Lincoln observa: "Reorganizamos a empresa e os números são bem expressivos. O grupo tinha duas revendas, agora tem cinco e está montando mais duas. Muito disso é devido ao F&I". Conforme o gerente, são feitas reuniões periódicas e os vendedores só têm acesso à tabela de financiamento que o grupo usa. Além disso, um funcionário de F&I fica responsável por fiscalizar as atividades do vendedor, que tem que se explicar, quando não consegue alcançar o objetivo: "Se o vendedor não atingir as metas, é retirado do quadro de vendas por uma semana e tem que se reciclar".