“Carro velho pra quê?/Se é pra ficar no caminho/Eu prefiro nem ter/Eu quero ter um novinho/Eu quero um tipo cupê/Um dia eu ganho sozinho/Aí é que vocês vão ver.” O que foi idealizado por Herbert Vianna, nos versos iniciais de Carro velho, pode não estar associado só à vontade de ter um modelo da moda para desfilar com as meninas do Leblon, no Rio, mas à necessidade de ter um veículo capaz de encarar com segurança a realidade das BRs e das ruas.
Estudo do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), baseado em registros da Polícia Rodoviária Federal (PRF), mostra que as “latas velhas” estão presentes em mais de um terço dos acidentes nas rodovias federais de Minas. Ou seja, 16,3 mil das 43,6 mil ocorrências anotadas em 2010, o equivalente a 37%, envolvem carros com mais de nove anos de fabricação.
No caso de veículos de carga, a idade influencia mais. A desculpa de falha dos freios está diretamente associada à falta de manutenção e desgaste. Os números mostram que, enquanto as motos mais velhas causaram só 13,7% dos acidentes, dos caminhões e carretas com mais de nove anos de uso, quatro se envolveram em cada 10 acidentes.
E carregar essa pesada cruz nas rodovias federais mineiras, também ultrapassadas, construídas há mais de cinco décadas, e, em quase todos os casos, sem condições adequadas de tráfego e com fiscalização vulnerável, ajuda a explicar o motivo que leva Minas a ocupar a cada ano um lugar pouco visado no pódio: o de líder do número de mortes nas BRs.
A média de vida útil dos carros brasileiros é quase três vezes maior que a dos norte-americanos, segundo o coordenador do Núcleo de Infraestrutura e Logística da Fundação Dom Cabral, Paulo Tarso Resende. Ele diz, com base em estudos, que nos Estados Unidos os veículos são descartados depois de sete ou oito anos de uso. No Brasil isso só ocorre depois de 18 anos. “A condição da frota é péssima. Os carros não são substituídos e, sim, acrescentados aos existentes. Os velhos passam de uma mão para outra.”
O especialista aponta dois fatores obrigatórios para se evitar problemas com carros velhos: fiscalização e inspeção anual. A fragilidade da fiscalização, segundo ele, possibilita que veículos trafeguem sem condições. “Não precisamos ser fiscais para saber que eles não têm mais como rodar.” Por lei, o Estado seria obrigado a monitorar as condições técnicas, evitando que carros circulem com pneu careca, sem luz de freio, sem retrovisor, com problemas nos faróis etc. Mas a fiscalização é falha. O número de agentes nas vias é insuficiente e cumpre muitas outras determinações.
O segundo fator seria a inspeção anual, a fim de orientar os motoristas sobre o que precisa ser feito para o veículo trafegar com segurança. “A primeira tem caráter punitivo e o objetivo da segunda é orientar, educar e controlar as condições da frota”, diz Resende.
A idade da frota explica o fator exaustivamente divulgado pela PRF como causador de acidentes: a imprudência. Resende diz que as colisões frontais estão diretamente ligadas à baixa performance veicular: “Em uma ultrapassagem é preciso verificar o momento de aceleração, mas, o se o sistema não reage, não se adquire velocidade e ocorre a batida de frente”. Ele compara o momento de aceleração ao pique de um jogador de futebol rumo ao gol: “Quando se fica velho, não se consegue a arrancada”.
Metade da frota de MG é ultrapassada
Metade da frota em circulação em Minas foi fabricada há mais de uma década. Levantamento feito pelo Estado de Minas no Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) mostra que 3,45 milhões dos veículos foram fabricados antes de 2001, colocando Minas na quinta posição do ranking de carros velhos em uso, atrás apenas de Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná, que, proporcionalmente, têm frota mais antiga que a mineira. O dado é um dos fatores que contribuem para a repetição de acidentes envolvendo carros antigos no estado, que detém a maior rodoviária do país, com trechos sinuosos e em ladeiras. Em Minas, circulam 7,15 milhões de veículos, somando carros, ônibus, caminhões e motos, mas 48,36% deles têm mais de 10 anos (veja arte).
Especialistas em mecânica automotiva esclarecem que não há uma relação direta entre veículos velhos e acidentes. O problema está na disposição dos proprietários de internar periodicamente os veículos em oficinas para que sejam submetidos a um check-up. “Os carros mais antigos já saíram do período de garantia, em que a manutenção é feita em concessionárias. Vencido este prazo, muitos passam a não obedecer aos padrões de manutenção”, afirma o professor de engenharia mecânica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Fabrício José Pujatti, especialista em projetos automotivos.
Ele afirma que, sem o incentivo da garantia, na maioria dos casos, o proprietário abre mão da qualidade do serviço e das peças. “Uma pastilha de freio original foi qualificada para a reposição, para garantir as mesmas condições da peça encontrada nos veículos novos. Muitas vezes, o motorista não obtém o mesmo resultado com peças paralelas”, exemplifica. Sem a devida atenção, sistemas de freios, amortecedores, direção e pneus contribuem decisivamente para um acidente.
“Um carro com 15 anos de uso que sempre recebe a manutenção preventiva está em ótimo estado para trafegar”, atesta o professor de engenharia mecânica da UFMG Juan Carlos Horta Gutierrez, especialista em segurança de veículos automotores. Segundo ele, cada fabricante estabelece determinados intervalos de quilômetros percorridos para a manutenção, o que acaba esquecido por muitos motoristas, até mesmo por questões econômicas.
Apesar de a Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave) divulgar o recorde histórico de veículos vendidos no primeiro quadrimestre deste ano, com 1,1 milhão de unidades comercializadas no país de janeiro a abril, o segmento com mais de 10 anos é o mais representativo da frota nacional, de acordo com classificação do Denatran.
As regiões mais ricas do país – Sul e Sudeste – são as que concentram a maior parcela de veículos com mais de 10 anos de fabricação, com metade da frota superando essa idade, enquanto o Norte e Nordeste, proporcionalmente, têm carros mais novos. Somados os dados dos sete estados da Região Norte, a média mostra que menos de três em cada 10 (29,19%) foram fabricados antes de 2001.
Caminhões nas ladeiras
Para Juan Gutierrez, as estradas mineiras, sinuosas e com muitas ladeiras, representam um risco a mais para os caminhões. “Nessas condições, o motorista controla a velocidade pisando no freio, que se aquece e, se não estiver em bom estado, perde muito do coeficiente de atrito entre as lonas e tambor”, explica. Ele desmente a recorrente justificativa de caminhoneiros que se envolvem em acidentes. “Dificilmente isso ocorre”, garante.
Fabrício Pujatti avalia que os pneus, freios e amortecedores são essenciais para a segurança. Além disso, o especialista em projetos automotivos avalia a segurança nos modelos mais novos. “O carro está mais seguro. Itens muitos caros há 10 anos, estão mais acessíveis hoje. Um carro de R$ 40 mil tem ABS e airbag”, diz.
Para o especialista em segurança automotiva, é consenso entre estudiosos que uma grande percentagem dos acidentes se relaciona à falta de manutenção e a solução passa por uma legislação ativa. “Está prevista desde 1997 pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB) a obrigatoriedade das inspeções técnicas, mas, infelizmente, até hoje isso não está implementando em quase nenhum lugar”, lamenta Gutierrez.